O preço da fé: Direito, dogma e discurso no Caso Jurgenfeld Ateliê

  • 06/05/2024
O preço da fé: Direito, dogma e discurso no Caso Jurgenfeld Ateliê
O preço da fé: Direito, dogma e discurso no Caso Jurgenfeld Ateliê (Foto: Reprodução)

Recentemente, um casal de empresários se recusou a confeccionar convites de casamento, feitos à mão, para uma celebração de união homoafetiva. Desde então, nas redes sociais, celebridades e perfis especializados em discutir Direito se uniram para demandar o pronto ajuizamento de ações contra eles, no intuito de que respondessem criminalmente e/ou indenizassem o casal homoafetivo por danos morais.

O caso Jurgenfeld Ateliê parece simples e até óbvio de resolver. O Código do Consumidor define como prática abusiva simplesmente negar a prestação de serviços (art. 39, inciso IX). Entre os crimes previstos na Lei do Racismo estão as negações de servir, atender ou receber cliente ou comprador, com uma pena de reclusão de até três anos (art. 5o, Lei 7.716/89). Claramente, foi o que aconteceu. O que há para discutir?

No entanto, a complexidade do caso está no ponto no qual a prestação de serviços se converte em reprodução obrigatória de um discurso ou convicção x, com a qual os empresários discordam. Dá-se o nome de “compelled speech” (discurso forçado ou coagido) ao discurso que é imposto às pessoas pelo Estado, contrariando o que realmente pensam e desejam expressar.

Em entrevista ao Guiame, o casal de empresários disse que seu trabalho não é apenas uma fonte de renda, mas uma forma de honrar Jesus. Produzir o convite celebrando a união de um casal homoafetivo, à revelia de suas convicções mais íntimas e sagradas, seria um exemplo de discurso coagido, o que ataca diretamente a dignidade humana deles e viola seus direitos ao tratamento humano e razoável (art. 5o, III), à livre manifestação de pensamento (art. 5o, IV) e à liberdade de consciência e crença, que a Constituição declara inviolável (art. 5o, VI, Constituição Federal de 1988).

Nesse contexto, cabe esclarecer que o serviço não foi negado em razão da orientação sexual dos consumidores (genericamente dada), mas pela impossibilidade do fornecedor prestar o serviço específico sem violar a própria consciência. A distinção é importante porque quando a prestação de serviço requer a expressão ou reprodução de um discurso específico, o direito do fornecedor de livremente aderir ou não àquele discurso merece análise.

Em 2018, a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou um caso semelhante, o Caso Masterpiece Cakeshop. Naquela ocasião, um confeiteiro cristão se recusou a personalizar um dos seus bolos artesanais para um casamento homoafetivo. Para Jack Phillips, não haveria qualquer problema em vender seus bolos padronizados, de pronta entrega, para clientes homossexuais. O que Phillips se recusou a fazer foi produzir um bolo personalizado, celebrando ou comunicando algo que sua religião condenava. Phillips entendia que seus bolos artesanais eram obras de arte que deveriam, primeiramente, glorificar a Deus. Prestar o serviço requerido seria, assim, violar sua liberdade de crença, expressão, religião e artística.

A Suprema Corte absolveu Philipps. Os juízes entenderam que a laicidade do Estado obrigava o próprio Estado a ser neutro na discussão de assuntos religiosos, adotando um ponto de vista neutro (viewpoint neutrality). Por ser laico, o Estado se priva de usar sua força para impor a adoção, rejeição ou determinada interpretação dos dogmas religiosos. Forçar Phillips a produzir bolos que o ofendem seria abdicar dessa neutralidade e abraçar um lado - ou crença - com dogma do Estado.

Ainda nesse julgamento, foi considerado o exemplo contemporâneo de William Jack, no qual três padarias recusaram o pedido de Jack por um bolo com a mensagem “Homossexualidade é um pecado detestável. Levítico 18.22”. Essas padarias não se recusaram a atender os cristãos em geral, mas se negavam a reproduzir um discurso cristão que julgavam ofensivo e incompatível com seus valores. Na justiça, o direito das padarias prevaleceu sobre o direito de Jack de ser atendido e não ser discriminado como cliente.

No Brasil, entendemos que a resolução do Caso Jurgenfeld Ateliê deve guardar em mente a possibilidade de um William Jack brasileiro. Seria adequado que artesãos gays fossem forçados pelo Estado – sob pena de serem presos e/ou pagarem indenização por danos morais – a produzirem bolos, ou convites, ou qualquer outro tipo de serviço ou produto, expressando neles discursos que reprovem ou desqualificam a homossexualidade?

O pesquisador Erik Bleich observa que as religiões promovem visões de mundo – as raças não. Portanto, as religiões são alvos legítimos de contestação, e frequentemente estão elas mesmas envolvidas em denunciar intensamente crenças contrárias (Bleich, 2011, p. 24). Isso cria um problema para o direito brasileiro, já que a mesma Lei pune a discriminação antirreligiosa, homotransfóbica e outras, todos sob o nome “racismo”. Há diferença entre as discriminações – não se contesta alguém por ser negro, ou nordestino, ou francês, mas se contesta se os orixás são reais, se Maria morreu virgem, se só Jesus salva, etc. A laicidade do Estado permite a contestação desses dogmas – não apenas das religiões organizadas, mas todos, inclusive os dos movimentos sociais. Inclusive do movimento LGBT+.

O Supremo Tribunal Federal (STF) esclareceu a questão quando ressalvou o direito dos religiosos de ensinarem suas doutrinas contrárias à homossexualidade no julgamento da ADO 26 (2019). Acusar os empresários de homofobia ignora diretamente a ressalva do STF, quando disse que “a repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa”, sendo “assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente (...) de externar suas convicções (..) independentemente do espaço, público ou privado”.

É preciso distinguir a diferença entre as pessoas que se identificam como homossexuais, um movimento social organizado que exerce pressão jurídica e política para consolidar os Direitos LGBT+ (Gay Rights), e um pensamento filosófico correspondente, cujos dogmas incluem a autoaceitação, autoexpressão e autorrealização e a rejeição da abnegação cristã. Não se contesta a orientação sexual das pessoas, o desejo que sentem e seu direito de senti-lo. Muito menos seus direitos de serem, genericamente, servidos e atendidos. Porém, assim como acontece com as religiões, os credos de fé devem ser de aderência opcional e sujeitos à contestação e eventual rejeição. As pessoas – inclusive fornecedores, sugere-se aqui - devem ter o direito de não celebrar o que reprovam.

Observa-se o parecer de um dos noivos, ao ser negado serviço pelo Ateliê: “me senti no século XII, como eles são ignorantes, como que uma pessoa não enxerga?”. Eis o problema e a promessa da democracia: as pessoas simplesmente não enxergam as coisas da mesma maneira.

Já os proprietários do Ateliê fizeram postagem reclamando de “heterofobia”, mas também não é esta a questão. O que está sob julgamento é o status jurídico da heteronormatividade. Esse é o nome dado ao padrão macho-fêmea, matrimonial, monogâmico, heterossexual, que é apresentado no livro de Gênesis e que múltiplas crenças e tradições defendem mundo afora. A Lei protege quem rejeita a heteronormatividade, sendo lícitas a participação em uniões homossexuais e não-monogâmicas, por exemplo. A pergunta que se faz agora é: a Lei também protege quem defende a heteronormatividade? Ou a proteção aos LGBT+ criou uma nova “lei de blasfêmia”, na qual um discurso contrário é automaticamente condenado e punido?

Percebe-se um movimento na direção de esvaziar a ressalva da ADO 26 e patologizar - e criminalizar - todo discurso heteronormativo sob a pecha de “homofobia”. Esse ímpeto anti-heteronormativo atropela, porém, os quase 9 em 10 brasileiros que, segundo o IBGE de 2010, se identificam como cristãos e tem como credo de fé a heteronormatividade essencial da criação de Deus: “Macho e fêmea os criou”.

Uma coisa é certa: a resolução do Caso é nada óbvia. Múltiplos pontos adicionais de discussão saltam aos olhos. Há muito a ser dito sobre o uso indiscriminado do termo ‘homofobia’, que patologiza e criminaliza toda e qualquer defesa de uma visão heteronormativa da sexualidade humana (inerente à todas as religiões abrâamicas, por exemplo), e a possibilidade de tal patologização configurar crime de racismo religioso, nos termos do art. 20 da Lei 7.716/89.

A objeção de consciência precisa ser pensada com cuidado, em especial no contexto das relações horizontais entre os cidadãos, inclusive nas relações empresariais e de consumo (pode-se pensar nos exemplos de plataformas, estamparias e confeitarias que recusam-se a reproduzir conteúdos específicos, como os pornográficos ou incendiários). O problema suscitado aqui do “compelled speech” precisa ser melhor estudado, junto com o efeito inibidor (“chilling effect”) dos cancelamentos nas redes e ajuizamentos, que aterrorizam os cidadãos, impedindo-os de expressarem opiniões e convicções permitidas por Lei mas vetada por determinado grupo de pressão.

 

Referência Bibliográfica:

BLEICH, Erik. The Freedom to Be Racist? How the United States and Europe Struggle to Preserve Freedom and Combat Racism. Oxford University Press, 2011.

 

Sobre autor:

Joshua Fantini Blake é membro da ANAJURE, advogado em Belo Horizonte/MG e está concluindo seu Mestrado em Direito na Universidade FUMEC.

Sobre a ANAJURE:

A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JURISTAS EVANGÉLICOS (ANAJURE) é uma entidade brasileira fundada em 2012, sendo composta por operadores do direito, integrantes do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da OAB, das Procuradorias Federais e Estaduais, assim como Professores e estudantes de todo o país, estando presente em 25 Estados da República Federativa Brasileira, e tem como lema a “Defesa das Liberdades Civis Fundamentais”, em especial, a Liberdade Religiosa, de Expressão e a Dignidade da Pessoa Humana. A ANAJURE também é filiada a instituições internacionais que trabalham em defesa das liberdades civis fundamentais em todo o mundo, como a Federação Interamericana de Juristas Cristãos (FIAJC) e a Religious Liberty Partnership (RLP).

* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

 

Leia o artigo anterior: A terapêutica religiosa ignorada na pandemia

FONTE: http://guiame.com.br/colunistas/anajure/o-preco-da-fe-direito-dogma-e-discurso-no-caso-jurgenfeld-atelie.html


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